REFORMA DA PREVIDÊNCIA E
DESIGUALDADE SOCIAL
Antonio Carlos Tavares [1]
O Jornal Folha de São Paulo, do
dia 4 de março de 2017, na seção Tendências/Debates, questionou se a “idade mínima
de 65 anos é adequada para a aposentadoria”. A ela responderam “sim” os
economistas F. S. Salto e G. L. de Barros. Argumentaram eles que, com o
envelhecimento da população brasileira, em 2050 os idosos superarão em duas
vezes e meia o seu número atual. Diante disso, como o Estado já gasta hoje
cerca de 12% do PIB com aposentadorias e outros benefícios, daqui a algum
tempo, sem a reforma, não haveria como pagar as obrigações previdenciárias
previstas. Salientaram também que hoje a idade média da aposentadoria por tempo
de contribuição é 55 anos, mas como um indivíduo com esta idade tem uma
expectativa de vida de 81 anos, ele, obviamente, oneraria, por longo tempo, o
sistema previdenciário. Os autores destacaram que os mais pobres já se
aposentam aos 65 anos, por possuírem maior dificuldade em acumular o tempo de
contribuição e que, assim sendo, a nova regra afetaria, sobretudo, a classe
média. R. Patah, advogado e
administrador, respondeu “não” à pergunta formulada, considerando que a
previdência é um dos maiores e melhores programas de distribuição de renda do
mundo e que a mudança proposta acentuaria mais a desigualdade social do país.
Disse ele que desonerações que beneficiaram vários setores empresariais, a
falta de cobrança da dívida ativa de 374,9 bilhões de reais e o pouco controle
sobre seus bens, constituídos de imóveis e outros tipos de propriedade, foram
aspectos que acentuaram o seu enfraquecimento. Por razões assim, o articulista
a considera mal administrada e uma verdadeira caixa-preta. Assim sendo, para
sua reforma, o primeiro passo, seria a implantação de nova gestão,
transparente, com diálogos entre trabalhadores, empresários, congresso e
governo. Como o estabelecimento de uma idade mínima é apenas um dos aspectos da
reforma previdenciária, sem dúvida alguma, a discussão em torno da questão,
mesmo com boas intenções do jornal, ficou prejudicada. A proposta
de mudança, além de fixar a idade mínima de 65 anos para a
aposentadoria, eleva o tempo de contribuição de 15 para 25 anos. Apenas esta
observação coloca por terra o argumento de F. S. Salto e G. L. de Barros de que
a reforma afetaria principalmente a classe média, uma vez que os mais pobres já
se aposentam aos 65 anos por dificuldades em completar o tempo de serviço. Ora,
acrescidos dez anos ao tempo de contribuição, eles passariam a se aposentar aos
75 anos ou mais, embora possam ter
trabalhado, ainda que na informalidade, desde crianças. Como, frequentemente, abandonam os estudos,
recebem salários baixos por toda a vida ativa.
Além de trabalharem mais, irão
adquirir o direito à aposentadoria já
septuagenários, muitas vezes com doenças crônicas típicas da idade, em um país
onde o serviço público de saúde é precário e só tem piorado ao longo do tempo.
Além disso, com a reforma, passariam a receber menos, uma vez que teriam
direito apenas a 76% de seu benefício integral, que corresponderia à média de todos os seus salários de
contribuição e não pela média dos 80% maiores salários como no regime
vigente. Aqueles que ingressarem no
mercado de trabalho após a conclusão de cursos universitários, por volta de 25
anos, e que forem considerados pertencentes à classe média, só chegarão à
aposentadoria integral, calculada pelas novas regras, aos 74 anos. Saliente-se
que a expectativa de vida dos brasileiros hoje é de 75 anos, mas que em vários
estados ela é menor. Como a idade mínima para aposentar poderá ser alterada à
medida que a expectativa de vida crescer, cada vez menos pessoas alcançarão a
aposentadoria integral. E aposentadoria
aos 65 anos de idade será uma utopia, a menos que o beneficiário opte por
valores extremamente baixos, que poderão se tornar um problema familiar maior
ainda no caso do falecimento do titular e do pagamento de pensões. Entre estes
profissionais estão os professores, dos quais, para uma educação de melhor
qualidade, se espera que concluam o curso superior. Estão eles sujeitos a
jornadas diárias de oito horas ou mais, em pé, ao lecionarem em vários lugares
e turnos, em escolas muitas vezes precárias, principalmente as públicas, com
grande número de alunos por sala e convivendo com a violência
institucionalizada. Ninguém pode negar a importância destes profissionais para
o país, pois além de contribuírem para a formação científica, artística e
cultural de seus alunos, têm papel de destaque na formação dos cidadãos. Se o
país não dá importância à educação,
todos os setores da sociedade desmoronam e isto fica claro no Brasil de
hoje. Ora, os salários dos professores brasileiros, segundo dados de 2012 da
Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico, em estudo divulgado
em 2014, estão entre os mais baixos do mundo. Entre 38 países, o professor
brasileiro de escolas públicas só ganha mais do que um docente da Indonésia. O
salário médio nestes países era de 29.411 dólares/ano, quase três vezes mais do
que o brasileiro de 10.375 dólares. Em Luxemburgo, que encabeça a lista,
ganhava-se 66.085 dólares/ano. Com a crise brasileira pós 2012, com certeza, a
situação piorou, uma vez que os salários foram congelados e estados como o Rio
de Janeiro sequer estão pagando seus funcionários. Não há dúvida de que a labuta no campo é
desgastante e se torna cada vez mais difícil, pois exige aptidão física, que,
até em atletas de elite, declina com a idade. O agricultor familiar começa a
trabalhar cedo e leva uma vida de sacrifícios, pois está sujeito às intempéries
e às oscilações de um mercado sobre as quais ele não tem qualquer controle. Por
essa razão, pelas regras atuais, o agricultor familiar recolhe para a
previdência um percentual sobre a receita bruta de sua produção, que é
variável.
Ora, neste país não se pode
chamar de privilegiados professores e agricultores familiares, mas eles, que
dispunham de aposentadorias especiais,
também serão enquadrados nas mesmas regras propostas. E vale lembrar que
quando se comparam os professores e os agricultores dos diferentes estados e
municípios brasileiros há contrastes marcantes entre eles, com muitos vivendo
em situações de penúria. No caso de morte do trabalhador ou do
aposentado, com as mudanças propostas, o cônjuge passará a receber apenas 50%
daquilo que o segurado teria direito, acrescidos de 10% para cada dependente,
no lugar dos 100% pagos atualmente. Além disso, tal benefício será desvinculado
do salário mínimo, deixando de existir garantias de reajustes adequados com a inflação.
Como cada vez menos brasileiros farão jus às aposentadorias integrais, muitas
famílias passarão por sérias dificuldades após a morte do principal responsável
pela renda familiar, pois as despesas com aluguéis, energia, água, impostos,
alimentos não irão decrescer na mesma proporção proposta pela previdência. Ora, as mulheres mais pobres são aquelas com
mais dificuldades para acesso aos postos de trabalho e que recebem os piores
salários. E muitas delas, com menor idade, sequer terão direito à pensão
vitalícia.
Portanto, fica claro que os mais
pobres serão os mais afetados com a reforma previdenciária. Pelos baixos
salários são impedidos de poupar, de dar condições ideais de estudo aos seus
filhos e, com a aposentadoria ou pensão, na velhice, quando aumentarem os
gastos com a saúde e diminuírem os rendimentos, estarão relegados a uma sistema
médico-hospitalar que, com outras medidas tomadas pelo atual governo, só tende
a piorar. Em contraposição, os mais privilegiados financeiramente terão acesso
aos planos de saúde, às melhores escolas e condições para investimentos e
adesão a planos de previdência privada, trazendo mais ganhos ao sistema financeiro.
Um estudo de 2015 do IBGE, intitulado
“Síntese de Indicadores Sociais: uma
análise das condições de vida da população brasileira”, disponível em
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95011.pdf, utilizando o
índice de Gini, cujo valor mais próximo de 1 retrata maiores desigualdades
sociais, comparando dados do período 2010/2013 de 15 países da América Latina,
Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador,
Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, mostra que o
Brasil, com o valor de 0,56, só tinha uma situação melhor do que Honduras com
0,57. O índice médio de todos os países considerados era de 0,49. Comparado com
o valor do período 2000/2003, de 0,63, até houve uma melhora, mas insignificante
para tirar o país das últimas posições no que diz respeito às diferenças entre
ricos e pobres. Em 2014, em pesquisa nacional por amostra de domicílio, o IBGE
calculou para o Brasil um índice de 0,497, mas com desvios regionais que
levaram ao valor de 0,507 no Centro-Oeste. Esta melhora dos últimos anos pode
perder o significado diante do empobrecimento geral da população frente a maior
recessão que o país enfrenta, com cerca de 12,5 milhões de desempregados pelas
cifras oficiais.
Dados da Receita Federal do
Brasil, divulgados em maio de 2016 no Relatório da Distribuição Pessoal da
Renda e da Riqueza da População Brasileira (2015/2014), disponível em
http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/distribuicao-renda-e-riqueza/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09.pdf,
mostraram que 0,1% da população brasileira, ou 27 mil pessoas num universo de
27 milhões de declarantes do imposto de renda, afirmaram ter R$ 44,4 bilhões em
rendimento bruto tributável e R$ 159,7 bilhões em rendimento total bruto. Estas
pessoas possuem 6% da renda bruta e 6% dos bens e direitos líquidos do
país e têm uma renda
e uma quantidade de bens e direitos de, respectivamente, 3.101% e 6.448%
superiores à média dos declarantes. Já 28% da renda bruta e 28% dos bens e
direitos pertencem aos 5% mais ricos. Os
dados da Receita referentes ao ano base de 2013 mostram que de um universo de
101,5 milhões de pessoas economicamente ativas, 26,5 milhões entregaram a
declaração de imposto de renda da pessoa física. Deste total 50,7%, que figuram
entre os cidadãos considerados privilegiados do país, possuíam rendimentos de
até cinco salários mínimos.
Ora, com a reforma previdenciária
proposta, esta desigualdade social crescerá e com ela os conflitos e a violência,
haja vista que em muitos lugares, como mostra a cidade do Rio de Janeiro, a
autoridade do Estado já não se faz presente. Não há como negar que a população
brasileira passa por um processo de envelhecimento e que o Estado está falido.
Sem entrar nas causas da falência, sua recuperação deve passar por uma série de
medidas, entre elas uma possível reforma da previdência, que poderia ser feita
no bojo de uma série de outras mudanças, ao contrário da forma proposta e
defendida por aqueles que fazem contas de donos de botequim. Não podem apenas
aposentados e pensionistas arcarem com o ônus de um acerto de contas, porque
isto pode lançar o país no caos em vez de ser uma solução como apregoam os
fazedores de contas e a propaganda oficial.
A mudança das regras
previdenciárias poderia, por exemplo, ser discutida juntamente com reformas
políticas. Será que são necessários tantos deputados federais, estaduais,
senadores e vereadores, uma vez que eles não representam os interesses da
maioria da população brasileira, como mostram os escândalos divulgados pela
mídia? Será que os benefícios de que estes políticos desfrutam não poderiam ser
diminuídos? Será que os assessores parlamentares não poderiam ser reduzidos e
admitidos somente por concursos? Será que medidas assim também não ajudariam a
ajustar as contas do país? Não é uma vergonha manter tantos privilégios
enquanto se votam medidas que irão empobrecer ainda mais os brasileiros mais
necessitados? A par disso é preciso uma
auditoria minuciosa das contas da previdência, com a participação dos diversos segmentos da
sociedade, até porque depois de quase dois anos do lançamento do ESocial das
domésticas, não se sabe sequer quem são as pessoas beneficiadas, como
amplamente divulgado, o que é um exemplo de desorganização. Portanto, cidadão brasileiro, se você acha
que será prejudicado com a reforma previdenciária, proteste por todos os meios
possíveis, não se acomode porque é a sua vida e a de seus dependentes que serão
afetadas. Aqueles que vão votá-la, muitos dos quais não são dignos de
confiança, precisam estar cientes do
descontentamento da grande maioria da população.
Fonte do artigo: Divulgação pelo
autor, 2017.
[1]
O Prof. Dr. Antonio Carlos Tavares é geógrafo e docente do Instituto de Geociências
e Ciências Exatas da UNESP, Campus de Rio Claro.
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